Ainda não enriqueceu?
A pobreza é uma questão de perímetro. Minha cachorrinha, por exemplo, é uma rainha dentro de casa e do raio de oito metros da coleira. Come do bom e do melhor, brinca, dorme, faz birra, dá nome ao Wi-Fi. Mas, se sair correndo, vai revirar lixo e morar na rua. É uma riqueza contextual, amarrada a um contrato. Parece cruel? Então pense no seu salário. Imagine ficar sem ele. O tique-taque agonizante do dinheiro que vai acabando. Os boletos, o aluguel, a fatura do cartão. O sushizinho da sexta à noite virando dogão. Quem vive de salário — de renda ativa — pode até criar um perímetro confortável, mas não pode deixá-lo. É acordar, trabalhar, chegar cansado, dormir e repetir, torcendo para que os feriados não caiam no fim de semana.
Mas calma lá. Nós, millennials, não fomos criados para viver de coleira. Não, senhor. Nós somos a geração especial, global, de mil e uma formas de enriquecer — só basta escolher qual. Então cadê a tal da renda passiva — essa terra prometida na liturgia millennial onde o dinheiro faz mitose enquanto a gente viaja o mundo e enche de inveja os invejosos? Ela existe — disso eu tenho certeza. Vejo fotos; ouço relatos; conheço gente que mora por lá. Mas como faz pra chegar e passar pela portaria?
Uma rápida visita a uma livraria ou à internet revela toda uma indústria de barqueiros da prosperidade, que, por duas moedas de ouro, prometem te levar às águas turquesa da renda passiva. Acorde cedo, pague flexão, medite, leia biografias, aprenda sobre LCIs e LCAs e os pipipis e papapás do marketing digital, das criptomoedas, da inteligência artificial. Invista em networking e na sua personal brand, compre um curso de como vender curso para gente que quer aprender a vender curso, tire uma foto de perfil segurando um microfone, compartilhe insights no LinkedIn. Frequente o culto da parede preta, deixe o monge branco limpar seus chakras, saia das redes sociais, viva de redes sociais, funde uma rede social, corte o cafezinho. É assim que os ricos ficam ricos — juram os pobres. Não é por herança, sorte, golpe, ou por (fingir) gostar de coisas que dão dinheiro e (fingir) ser bom nelas. E se o que você faz das nove às cinco não está te enriquecendo — repense o que você faz das cinco às nove.
Na profecia da renda passiva, o tempo é um ativo, e a liberdade, um mandato de investimento. Assistir a um filme, por exemplo, pode até ser gostoso — mas é um gasto, não uma alocação. Que tal combinar isso com algo mais rentável? Deixe o filme passando enquanto você corre na esteira. Ponha legenda, tire o som e aproveite pra escutar um podcast de empreendedorismo em paralelo. Tudo em 2x, pra caber mais. O lazer produtivo é um exercício de eficiência. Mais planejamento, mais disciplina, mais resultado. Pra não se perder, é bom colocar tudo na agenda. O jantar com a namorada, o sexo, a creatina, o carinho no cachorro. As sete horas e vinte minutos de sono que seu smartwatch vem te cobrando. Sim, em moderação, o descanso também é um investimento. Em moderação.
Nessa vida ritalinada e cronometrada, tira-se proveito de tudo e não se aproveita nada. A felicidade está sempre em fase de plantação. A colheita ainda vem, confia que vem, não desiste, foca. Ainda não chegou? Troque de barqueiro. O meu é muito bom, vai aqui o link. A ansiedade do adulto moderno é a escolha entre a claustrofobia e o milagre. E você aí se julgando por não conseguir sair da cama?
Mas calma. Sempre que bater um desânimo quando você olhar para o saldo da conta, lembre-se de que tem gente que passou anos pedalando a bicicleta da prosperidade pra terminar pobre igual a você — e ainda por cima todo suado. Gente que trabalhou enquanto você dormia, que foi ao retiro do coach enquanto você curtia o carnaval, que folheou o LinkedIn enquanto você cantava Aladdin no chuveiro. Como essa gente vai lidar com o sacrifício em vão, o fracasso, a chacota? Certamente não com lucidez, aceitando a derrota. Quem cai em papo de coach, cai em qualquer papo. Quando a bolha da prosperidade estourar, dos respingos de sabão se formará uma nova bolha de dissonância cognitiva — resta saber qual. Nós já passamos por isso. Durante séculos, a Igreja ludibriou o povo a projetar suas esperanças de riqueza no além. Os verdadeiros coitados — explicava o padre — eram os poderosos, que viviam sob o peso da responsabilidade e da tentação. Pobre rei: o que é a fome perto da angústia de um banquete? Mas, com as revoluções industriais, não se podia mais justificar a desigualdade com direitos de nascimento e intervenção divina. O pobre não queria mais esperar morrer para ser rico. A submissão do espírito deu lugar à da aspiração. A desigualdade passou a ser atrelada ao merecimento individual — papinho calvinista e dogma central do prosperismo contemporâneo. Não à toa, no inglês usa-se o mesmo termo para ganhar e merecer (earn). How much does he earn? se traduz para quanto ele ganha?; he earned it, para ele mereceu. Quem acha que o mercado se autorregula trata a riqueza como mérito, não como recompensa. Assim se dispensa mesmo a mais absurda das desigualdades de qualquer juízo de valor. Da menina branca que enriqueceu com dancinha no TikTok à menina negra que vende trufa no semáforo, cada uma está recebendo o que merece. Fim. Acha que faz sentido? Então explica pra mim: por que uma enfermeira do SUS com duas décadas de carreira merece ganhar menos que um estagiário do JP Morgan? Boa sorte quando você precisar que a mão invisível do mercado limpe a sua bunda na UTI.
Mas, se você é um millennial como eu, esse dia há de estar distante. Quem sabe, até lá, a bolha da prosperidade já tenha estourado. Convenhamos: está cada vez mais difícil sustentá-la. A maioria dos que se aventuram na profecia nunca chega do outro lado. Em breve, nossa geração terá mais passado que futuro. Viver de promessa e privação vai perdendo seu charme. É possível postergar muita coisa por muito tempo, mas não tudo, sempre. Mudanças maiores, a nível civilizatório, também colocam em xeque o discurso aspiracional. Quem sabe, daqui a meio século, a gente não esteja de volta ao feudalismo, sem nenhum prospecto de mobilidade social, apenas esperando o doce abraço da morte para ascender ao paraíso. Seja como for, até lá, a internet vai continuar pintando a pobreza como uma escolha, e te incitando a não desperdiçar um só instante naquilo que não traz retorno.
Por exemplo, o tempo que você dedicou a ler esta crônica — esses cinco, seis minutos — podia ter sido empregado em algo muito mais próspero. Um day trade, uma bet, um capítulo de Café com Deus Pai. O meu tempo escrevendo esta crônica, então — coisa de duas, três horas —, ainda mais. Infelizmente, o tempo é uma mercadoria perecível. Um segundo perece em um segundo; uma hora, em uma hora. Assim como um quarto de hotel que virou a noite vazio, o lucro que a gente deixou de tirar nesse tempo nunca mais será recuperado. Acrescida de juros e projetada em dez, vinte anos de vida, esta crônica pode ter te custado um carro. Pra mim, então, uma casa, um iate, um terreno na Lua. Um terreno onde eu poderia abrir uma franquia do Madero totalmente robotizada e com drive-thru para espaçonaves. Imagine que espetáculo. Eu mereceria milhões sem mover um dedo, curtindo a vida nas Maldivas. Sim, é possível que este texto seja a razão pela qual nós nunca atingiremos a tal da renda passiva. Mas, ainda assim, aqui estamos — pobres, amargos e entretidos — saboreando nosso lazer improdutivo. Minha recomendação: pare de lutar pelo dinheiro latente que escorre por entre os dedos. Mude de mindset. Preencha seu tempo livre com coisas que não rendem nenhum centavo. Brinque com seu cachorro, passe horas batendo papo, compre aquela blusinha, tome aquele sorvete, faça aquela viagem. Pare de seguir gente que te enfeitiça e estapeia com luxos aos quais você nunca terá acesso. Siga quem tem algo a dizer, não algo a invejar. Pule a sessão de autoajuda da livraria; ninguém tem mais a te ensinar do que um Machado, uma Clarice, uma Cora. Ouça música boa, não lixo-ostentação com publi de marca de carro. Aprenda sobre o mundo com jornalismo de qualidade — com gente que estuda, reflete e se compromete com a verdade — e não com podcasts e youtubers da turma do pum do palhaço. Vá ao cinema, não ao culto. Vá à terapia, não ao coach. Acorde quando estiver descansado, vá dormir quando estiver com sono. Tome o cafezinho.
A marca do nosso tempo é a divisão do mundo entre duas elites: a intelectual, cada vez mais pobre; e a financeira, cada vez mais torpe. Seguindo o meu método, você pode pelo menos pertencer a uma delas — em vez de unir-se à claque de idiotas que levantam cedo pra passar o dia bocejando insights. E olha que eu nem te cobrei duas moedinhas de ouro por isso.