Air Mail

Air Mail
Photo by Ali Bakhtiari / Unsplash

O que é o que é... que conecta o mais afetado dos progressistas ao mais cristopata dos conservadores? A crença de que o mundo é cheio de gente horrível que precisa ser moralizada. Agora imagine que essas duas forças, hoje tão antagônicas, encontrassem seu denominador comum: quem poderia pará-las?

O álcoolo, caro leitor. Somente o álcool tem esse poder — como nos mostra a História.

Ao final da Primeira Guerra Mundial, os EUA viviam uma onda de moralismo social que encontrou no álcool o seu satanás. A pauta rapidamente ganhou força, congregando a esquerda puritana ao mais profundo cristanato. Associações como a Liga Anti-Saloon e o Partido Proibicionista, que já vinham fazendo lobby contra o álcool desde meados do século 19, tornaram-se forças políticas impossíveis de se ignorar. Os partidos Democrata e Republicano — que à época já bipartiam a política americana — acabaram abraçando a causa. O resultado foi a famosa Proibição (1920–1933), que o Congresso aprovou com maioria esmagadora e levou adiante, apesar do veto do presidente Woodrow Wilson.

Dos bares de Manhattan aos alambiques de Kentucky, a ordem era clara: tornou-se ilegal a produção, venda e consumo de álcool. Mas o cidadão comum tem uma compreensão intuitiva de que a lei define apenas o que é passível de punição, não o que é errado. Não tardou até que o povo se adaptasse à seca. Uma porta empoeirada no fim de um corredor escuro, uma palavra-chave para o balconista da farmácia: em Nova York, surgiram os famosos speakeasies — bares escondidos que só podiam ser acessados por quem os conhecesse. O suprimento de álcool era garantido pela máfia, que viveu sua era de ouro durante a Proibição. A polícia aceitava pequenos agrados — muitas vezes engarrafados — para não encher muito o saco. Nas grandes cidades, só não bebia quem não queria. Ainda assim, esse esquema passava longe de resolver o problema. Quem não quisesse correr riscos — ou morasse em cidades menores, onde não existiam portinhas empoeiradas — acabava não tendo escolha.

Mas, enquanto nos EUA imperava a aridez do moralismo, ali pertinho, em Cuba, a noite era regada a prazeres libertinos. Prostituição, álcool, jogatina — Havana habitava a imaginação do americano médio como um paraíso do pecado. Um paraíso que, embora não fosse oficialmente território americano, era muito próximo disso. Durante séculos, Cuba foi uma das mais rentáveis colônias do Império Espanhol, focada no cultivo da cana-de-açúcar. Esse capítulo chegou ao fim no final do século 19, com a Guerra Hispano-Americana. Derrotada, a Espanha se viu obrigada a ceder aos americanos uma série de territórios em disputa: Guam e as Filipinas, no Pacífico; Porto Rico e Cuba, no Caribe. Com o fim da guerra, os EUA instauraram um governo militar de transição em Havana, que durou quatro anos até a fundação da República de Cuba. Na despedida, os EUA se presentearam com um pedacinho da ilha, que viria a ser um dos lugares mais infames do mundo: a Baía de Guantánamo. Nas décadas seguintes, Cuba viveu um período conturbado de golpes e revoltas, marcado pela constante intervenção americana, culminando na eleição de Gerardo Machado para presidente, em 1924. Durante sua gestão, Cuba tornou-se uma riviera para turistas dos EUA, dominada por hotéis e restaurantes construídos por americanos e para americanos. Em 1927, era fundada a Pan American Airways (Pan Am), que viria a ser um dos grandes ícones da aviação do século 20, com seus pilotos de quepe branco, aeromoças de terninho azul-céu e jumbos que atravessavam os oceanos. Mas muito antes de epitomizar o glamour da viagem intercontinental, a Pan Am servia uma única rota: o tráfego de correspondências e passageiros entre Key West e Havana. Além de representar uma cápsula de ejeção do puritanismo americano rumo à liberdade cubana, essa foi a primeira rota de correio aéreo internacional do mundo — numa época em que os telefones ainda eram escassos e transmitir informações de um ponto a outro era um grande desafio. Era futurístico, instigante, irresistível. Quem não queria participar?

E é desse capítulo da História que nasce a dica de hoje: o Air Mail — um drinque à base de rum e espumante que representa, talvez como nenhum outro, o sonho libertino que levava o americano a descer até Key West para pegar um voo da Pan Am e passar um fim de semana prolongado em Havana.

O rum — destilado nacional de Cuba — é primo da nossa cachaça. Mas, enquanto nós utilizamos o caldo fresco de cana como base e maturamos em madeiras locais — como amburana e jequitibá —, o rum geralmente é feito a partir do melaço (mais processado) e matura em carvalho. O resultado é uma bebida mais densa, que costuma puxar para notas de caramelo e baunilha.

O primeiro registro do Air Mail é de 1931, em um panfleto da Bacardí, até hoje uma marca dominante no mercado de rum. À época, ela ainda era sediada em Cuba. Após o fim da Proibição, a destilaria se relocou para o território americano de Porto Rico, a fim de poder distribuir suas bebidas nos EUA sem pagar tarifas. A possibilidade de retomar a produção em Cuba tornou-se ainda mais remota após a tomada de poder por Fidel Castro e a instauração do bloqueio comercial. Hoje, é quase impossível arranjar uma garrafa de rum cubano nos EUA.

Enfim, alguns anos após o panfleto da Bacardí, o Air Mail é mencionado nos manuais Just Cocktails (1939) e Here’s How (1941), onde o mestre coqueteleiro W. C. Whitfield compilou drinques da era da Proibição. Abaixo da receita, ele escreve que o Air Mail “deve te fazer voar bem alto”. Leve, fresco e sensual, ele tem sabor de noite de verão. Num primeiro momento, predominam as notas de tabaco e caramelo do rum, realçadas pelo dulçor do mel. Mas logo entra em cena o espumante, cuja adstringência ameniza o paladar, fazendo a transição para o perfume ácido e refrescante do limão. É ideal para começar uma noite de festa ainda no bar do hotel — ou para encerrá-la logo antes de subir ao quarto em excelente companhia.

Infelizmente, o Air Mail tornou-se uma raridade na coquetelaria moderna, que, como um todo, vem dando pouquíssima atenção ao rum. É um preconceito que talvez derive das versões horrivelmente melequentas de clássicos do rum — como a Piña Colada, o Blue Hawaii e o Mai Tai — servidas em bares de piscina. É provável que nenhum local nos seus arredores tenha o Air Mail no cardápio — e que os olhinhos do garçom se tornem dois pontos de interrogação cintilantes se você tentar pedi-lo mesmo assim. O mais recomendado, caro leitor, é fazê-lo em casa.

Para preparar um Air Mail, comece pelo xarope de mel. Basta ferver mel e água em proporção de dois para um. O resultado será um líquido viscoso e amarelado. Em uma coqueteleira, adicione 30 ml de rum, 15 ml de xarope de mel, 15 ml de limão espremido e bastante gelo. Chacoalhe bem, por cerca de dez segundos. Pegue um copo alto e coloque um único pedaço de gelo — o maior que você tiver e conseguir encaixar. Cubos menores derretem mais rápido, deixando o drinque tépido e aguado. Adicione 45 ml de espumante ao copo e, depois, coe o líquido da coqueteleira por cima. Como esse líquido é mais denso, ele tende a descer até o fundo do copo e se combinar muito bem ao espumante no caminho. Por fim, dê uma leve misturada com uma colher — não exagere, para não perder o gás. Para a decoração, você tem duas opções. O clássico é colar um selo postal na lateral do copo. Como eu assumo que você não tem uma gaveta cheia de selos — e, se tiver, eles são parte de uma estimada coleção — deixo aqui também a opção mais moderna: um maço de menta colocado diretamente dentro do copo.

Quanto à Proibição, seu fim foi acelerado pelo colapso da bolsa em 1929 e a subsequente Grande Depressão. Havia muita gente precisando de um bom gole de uísque — e outros mais questionando a lei sob um ponto-de-vista prático: fazia sentido econômico cortar todo esse segmento da economia e ainda ajudar a engordar as máfias? Puritanos de todos os credos tiveram que enfiar o rabo entre as pernas e escolher novas causas para encafifar.

Portanto invoco aqui um brinde aos moralistas, aos chatos, aos abstinentes e aos falsos contentes que insistem em tentar podar a irreverência que nos faz humanos. Salud!