Babaca ou narcisista?

Babaca ou narcisista?
Photo by Habib Dadkhah / Unsplash

É coisa recente essa de chamar babaca de narcisista. Faz parte do movimento que vem transformando tudo quanto é traço de personalidade em sintoma psiquiátrico. O assassino lá na TV não é um cara frustrado e violento; ele é logo um psicopata. O adolescente disperso não está com o fusível queimado de tanto TikTok; ele tem TDAH. E aquele colega que vive garfando o seu trabalho e semeando discórdia não é um mero babaca; ele é narcisista.

Em busca de justificativas mais palatáveis para falhas nossas e dos outros, preferimos reduzir a complexidade da vida a seu nível molecular. A responsabilidade não é minha — nem pelas causas, nem pelas consequências —, ela é dos meus neurônios.

E se uma rápida pesquisa no Google transforma qualquer coceira em câncer terminal, quando se trata de saúde mental, nós sequer recorremos à internet para sair metralhando diagnósticos: a amiga entristecida certamente está com depressão; o colega introvertido deve ter asperger; a sogra impulsiva sofre de borderline: uma verdadeira pandemia de falsos positivos.

A presença de um sintoma — se é que podemos chamar de sintoma — não prescreve a existência de uma doença. A maioria de nós tem dificuldade para se concentrar naquilo que não quer fazer, e nem por isso tem TDAH: é pra lá de neurotípico não conseguir prestar atenção na aula dupla de português. Da mesma forma, quase todos nós temos dias bons e dias ruins, mas somente uma fração sofre de transtorno bipolar. Como diz o ditado médico: quando você ouvir cascos, pense em cavalos, não em zebras.

Diferente do seu questionário do Buzzfeed, um especialista tem métodos confiáveis para discernir meros estados de espírito de suas projeções patológicas. A avaliação leva em consideração a duração e a consistência dos comportamentos considerados anômalos, bem como sua intensidade e potencial destrutivo para o paciente e as pessoas à sua volta. E tudo isso é avaliado não apenas com perguntas e respostas, mas por meio de observação.

Mas em se tratando de narcisismo, mesmo na psiquiatria a fronteira entre ocasião e doença perde a nitidez. É difícil traçar uma linha que separa um babaca sub-clínico de alguém que merece a etiqueta de TNP (transtorno de personalidade narcisista). Duração, intensidade, consistência: eu estou babaca, ou eu sou babaca? Depende de muitos fatores.

A Mayo Clinic, por exemplo, destaca como alguns dos principais sintomas do narcisismo: fantasias de sucesso e perfeição; um forte anseio por ser admirado e elogiado; um histórico de explorar outros para benefício próprio; e uma bela dose de inveja, ciúmes e arrogância. Parece alguém que você conhece? Tome cuidado.

O YouTube é cheio de dicas para identificar e se proteger dos tais narcisistas. Eles estão soltos por aí — alerta um vídeo —, entre os seus amigos e colegas de trabalho. Muitas vezes até mesmo dormindo na sua cama. Como escapar de suas manipulações, de sua soberba, de seu halo de destruição?

A dica mais comum é comportar-se como uma pedra cinza — isto é, uma pessoa corriqueira e sem graça. Somente assim — prometem os youtubers — o narcisista te deixará em paz e buscará uma nova vítima, tal qual um urso ignora a presa que se finge de morta.

Mas psiquiatras insatisfeitos com essa caça às bruxas vêm adotando uma abordagem revisada, que descreve o narcisismo não como uma condição absoluta e sim como um espectro: maneira pós-moderna de dizer que todos nós somos narcisistas em diferentes graus, e que uma divisão binária — os que são e os que não são — seria mera construção social. De babaca e de louco, todo mundo tem um pouco.

Pensamento interessante, esse. Inventamos uma doença cuja lista de sintomas é essencialmente um compilado de atributos do que o cidadão comum chamaria de má pessoa, e, após constatar que todo mundo é pelo menos um pouquinho mau, declaramos que a tal doença é um espectro?

Pois eu considero que o senso de humor também é uma doença espectral. Para de rir, isso é coisa séria. O espectro vai do palhaço (doente terminal) ao burocrata (quase imune).

O mesmo vale para a sensualidade, tão destrutiva para aqueles em estágio avançado no espectro — e para os outros à sua volta.

Digo mais: tanto o senso de humor quanto a sensualidade são questões de saúde pública. O Brasil não atinge seu potencial porque nós insistimos em ignorar os riscos da risada e do sexo.

Mas voltando ao narcisismo, fica a dúvida de como o psiquiatra faz para definir a posição de uma pessoa dentro desse espectro. Afinal de contas, é preciso levar em conta que, em diferentes esferas da vida, nós damos mais ou menos corda para nossa babaquice latente. Você é tão babaca com a sua avó quando ela te manda esperar o bolo esfriar quanto você é com o Lucas do TI quando ele se recusa a consertar sua VPN até você abrir um chamado?

É fácil cair no papo de que o verdadeiro eu de uma pessoa é a sua pior versão — é como ela se comporta quando profundamente contrariada. Por que seria? Você é mais autêntico quando está xingando um motoqueiro que te cortou na marginal do que quando está brincando com o seu cachorro? Não, o babaca interior não é seu verdadeiro eu — mas ele é parte inseparável dele.

Você sabe do que eu estou falando. Mesmo nos momentos de maior serenidade, sempre acaba transbordando um pensamento intrusivo — um azedume, uma crocância, um apimentado.

Mesmo que você não alimente seu babaca interior, ele te no jantar à luz de velas, na aula de yoga, na urna eletrônica. Digo mais: é a sua relação com ele que determina como você vota. Esqueça o velho eixo esquerda-direita — isso é tão pré-pós-histórico. Hoje, o eixo que move a política é entre os que rejeita seu babaca interior, e os que se orgulham dele.

Os primeiros, coitados, vivem na abnegação, respirando fundo, tomando coice atrás de coice e respondendo com notas de repúdio e lições de moral. Sem dúvida, é um pessoal admirável, que aspira por uma humanidade pacífica e solidária. Mas a batalha está cada vez menos promissora, e muitos deles já estão espanados. Outra complicação é que este lado alberga um grupo muito perigoso: os sinalizadores de virtude. Esses são babacas de nível elevado, já beirando o patológico, mas que não se reconhecem como tal. Em eterna negação, eles buscam prazer envergonhando os outros e tentando provar que são pessoas melhores do que você.

Já o pessoal do outro lado do eixo tem uma energia bem diferente. Babacas convictos, eles vivem de ragebait, cantando pneu, fazendo troça, dando grau. Para eles, tudo na vida é um jogo de soma zero — e o objetivo é sair ganhando. A confiança magnética e a onipresença na mídia vem angariando muitos fãs para esse lado. Nem todo mundo consegue resistir ao charme de um babaca — ainda menos quando o outro lado está cada vez mais derrotista e puritano.

Mas, em nome da medicina, não sejamos tão tendenciosos. Afinal de contas, somos todos narcisistas, certo? Estamos apenas em lugares diferentes do espectro. Desde que aprendi sobre isso, venho tentando dialogar com meu babaca interior. Suprimido, sinto que ele se torna perigoso; a qualquer momento pode explodir. É melhor dar um pouco de vazão. Nada muito exagerado. Experimente você também.

Deixe uma conversa morrer no visualizado e não respondido — ou pior, encerre-a com um “pois é kkk”.

Abra o grupo do condomínio e reaja à mensagem de um vizinho mala com um emoji irônico — um 🙃 ou um 🆒.

Começou a sentir o babaca se reidratando dentro de você? Então saia para ver o sol e tomar um café na padaria. Pare o carro travando a rua. Espaireça ao som das buzinas. Fure a fila do caixa quando ninguém estiver olhando. Relaxa, respira, você não está sozinho.

Deixe-se inspirar pelos grandes babacas do nosso tempo. Seja chiliquento como Ed Motta. Seja palestrinha como Lair Ribeiro. Seja golpista como Virgínia.

Vá a um estúdio de tatuagem e feche o antebraço com seu novo bordão: “os incomodados que se retirem”.

Saia pedalando pela Faria Lima como se estivesse na Tour de France. Xingue os motoristas, atropele os pedestres.

Filie-se ao Partido Novo. Dispute as eleições usando seu antebraço como lema de campanha. Vença. Ao final do mandato, planeje um golpe de estado. Dê o golpe de estado. Vença de novo. Dê seu nome a um viaduto. Viaduto o caralho: a um aeroporto.

Pose para um retrato a óleo portando as asas da última hárpia da Amazônia e um pesado manto com o pêlo do último panda de Sichuan.

Ufa. Sentiu o alívio?

É cansativo demais ser empático e simpático o tempo todo. E você está no espectro do narcisismo, coração. Permita-se.