Disfunção projétil
Tudo começou numa festa de aniversário. A caminho do banheiro, dei de cara com um amigo de longa data, quieto e abatido. Perguntei se estava tudo bem, ao que ele ergueu uma taça de vinho e pediu um brinde — à sua demissão.
— Fiquei sabendo hoje de manhã — disse.
Tinha sido tudo uma armação do sócio — um narcisista patológico, segundo meu amigo —, que foi colocando em suas costas a culpa pelos resultados ruins e arquitetando a demissão pouco a pouco, até conseguir as assinaturas necessárias.
— Estou até aliviado de ter saído.
A festa foi ficando barulhenta, então marcamos de sair na semana seguinte para conversar melhor. Nesse ínterim, o papo continuou por mensagem. Entre assuntos de trabalho e lembranças dos velhos tempos, perguntei da namorada. Era um relacionamento jovem — de três ou quatro meses — e que logo descobri que também não ia nada bem.
— Ela é uma pessoa muito conflituosa — ele se queixou. — Está sempre tentando se impor, cismando com coisa pequena.
Perguntei se ele já tinha abordado isso com ela, ou talvez levado o assunto a um psicólogo. Ele revelou que vinha fazendo algo melhor: recorria ao ChatGPT como terapeuta e mediador de conflitos.
Toda noite, ele subia as conversas de WhatsApp com a namorada para análise. O intuito era obter um parecer sobre as discordâncias e ajudá-lo a moldar o relacionamento para que funcionasse melhor. Questionei se ele não achava estranho enviar à namorada mensagens redigidas por uma IA.
— Tenho certeza de que ela faz o mesmo — ele respondeu, e me enviou um print. — Esses errinhos de ortografia, essa vírgula a mais, tudo isso ela enfiou aí para parecer que foi ela quem escreveu.
Poucos dias depois, eles terminaram. O ChatGPT o havia ajudado a enxergar que aquele relacionamento não tinha futuro. Quando ouvi essas palavras, compreendi que o buraco era mais embaixo. Eu só não tinha noção de quão fundo ele era — uma revelação que foi vindo em pílulas ao longo dos meses seguintes.
Desempregado e solteiro, meu amigo passou a dividir seu tempo entre podcasts e vídeos no YouTube. Muito do que ele assistia, ele compartilhava — e ainda gravava longas mensagens de áudio com comentários e reflexões que ofereciam uma janela para a sua mente. Sua maneira de interagir e compreender o mundo foi rapidamente se condicionando às ideias que ele absorvia de influenciadores cada vez mais encastelados na machosfera. Logo ele começou a papagaiar coisas como o 80–20 — a ideia de que 80% das mulheres têm interesse em apenas 20% dos homens. Na mesma linha, avaliou também que as mulheres modernas eram seres hipersexuais: elas teriam tamanha fartura de sexo à disposição que não viam mais sentido em amarrar-se a relacionamentos monogâmicos. Essa era a grande razão por trás da crise demográfica — e de ele estar sozinho embora tanto quisesse uma família.
Talvez este seja um bom momento para revelar que o cidadão em questão é um homem de trinta e sete anos, não um adolescente angustiado.
Perturbado com o que eu vinha ouvindo, tentei deixar a conversa morrer, mas não tardou até que ele me enviasse mais uma sequência de mensagens contando as novidades. Recentemente, ele tinha começado a vagar pelo centro de Berlim para praticar as táticas de conquista que vinha aprendendo na internet. Meia horinha por dia abordando garotas e tentando conseguir seus números de telefone. Em apenas uma semana, já tinha conseguido dois — mas não pretendia usá-los: aquilo era apenas treino.
— E, do mais, quem quer se relacionar com mulheres que saem dando seu contato para estranhos na rua?
Pouco depois, chegou a época das eleições alemãs. Obviamente, ele aproveitou para compartilhar suas reflexões inspiradas em grandes pensadores da internet. Sem renda nem poupança — e vivendo de auxílio-desemprego —, ele rugia que a solução para a crise da Alemanha era eliminar impostos — em especial para os bilionários.
— Caso contrário, eles vão todos embora!
Ele mesmo vinha pensando em se mudar para o Chipre ou para Malta. O problema era o auxílio-desemprego, que o amarrava a Berlim.
A guinada política veio no mesmo tom. Em outro áudio, ele contou, orgulhoso e inflamado, que havia desinstalado o Firefox depois que a Mozilla anunciou medidas mais rígidas de diversidade e inclusão.
— Pessoas competentes estão sendo substituídas por imbecis apenas por não terem opiniões bem-vindas — esbravejou.
Se, quando o encontrei naquela festa de aniversário — pouco antes das eleições americanas —, ele se mostrou consternado com a perspectiva de mais quatro anos de Trump, nem meio ano depois ele já aplaudia o novo regime americano como um lugar de otimismo e liberdade.
— As pessoas estão animadas, criando coisas novas. Enquanto isso, nós aqui na Europa vivemos presos no passado.
Sua obsessão por IA também foi se acentuando à mesma medida. Ele adotou o discurso de que as máquinas eram muito superiores aos humanos porque não se deixavam levar por vieses e emoções. Transformou sua foto de perfil num cartum estilo Ghibli gerado pelo ChatGPT.
— Chororô de esquerda — ele ralhou quando questionado sobre os direitos autorais.
Esse amigo era uma figura gregária em nosso círculo social, e muito do que planejávamos para os finais de semana passava pelo seu pequeno apartamento próximo ao Rosenthaler Platz. Mas, com seus novos ideais, pouco a pouco o grupo foi se reorganizando para excluí-lo. A programação era agendada em mensagens privadas. Ele não era mais convidado para nada; quando convidava, ninguém ia. O prego final veio quando — num arroubo de compaixão — o convidamos para comer lamen. Compareceu também uma amiga mais distante e notoriamente progressista. O papo rapidamente cambou para o lado político e foi azedando rapidamente, até que atingiu seu clímax: meu amigo argumentou que o denominador comum dos muitos problemas do mundo não era a desigualdade econômica — como insistia a garota do outro lado da mesa —, e sim a igualdade de gênero: se as mulheres voltassem a ocupar o seu papel, tudo funcionaria bem.
Naquele momento, ficou claro que ele havia atravessado o limiar da doutrinação. Não tinha mais volta. Ele agora era um deles.
Após meses acompanhando sua espiral negativa, havia enfim chegado o meu momento de partir. Minha voz era fraca diante da gritaria dos vídeos e podcasts que ele assistia noite e dia. Entendi que meu papel nesse enredo não era mais oferecer um ombro amigo, ajudar, contra-argumentar — cabia a mim apenas refletir e salpicar um pouco de sarro. Sim, sarro — pois o único remédio que ajuda no cuidado aos loucos é a comédia.
Meu ex-amigo é apenas mais um entre milhões de homens reduzidos a uma triste pilha de frustrações e tentativas patéticas de compensá-las. Um engenheiro de grande conhecimento, ele havia perdido não apenas o senso de ridículo, mas também a lógica básica.
As mulheres são seletivas demais ou promíscuas demais? Ora, essas afirmações são incompatíveis. Se 80% delas se dividem entre 20% dos homens, a tendência é que eles sejam mais promíscuos do que elas. Do mais, o 80–20 não se aplica também ao lado feminino? Os homens são desiguais perante as mulheres, mas as mulheres são todas igualmente atraentes para os homens? Quem defende isso parece nunca ter visitado uma rede social, um cinema ou um site de pornografia. O que meu ex-amigo parece buscar é uma garota que figure entre as 20% mais desejadas, mas que ainda assim só tenha olhos para ele, que pertence à ralé dos 80%: uma aberração matemática.
Esse infortúnio, tão comum entre seus colegas redpill, gera revolta contra as mulheres e a aspiração de alcançar um percentil melhor na sociedade — pisando em cima dos outros. É que dentro do sistema de crenças da machosfera, o mundo é reduzido a jogos de soma zero. No trabalho, em casa ou nas urnas, o homem precisa escolher entre predador ou perdedor.
Dessa romantização da selvageria — alimentada por metáforas bélicas e fanfarronices pseudo-filosóficas — nasce a busca por invocar o homem primitivo, que não se deixa controlar por modernidades como a polidez, a empatia e a lei. Um homem que reconhece apenas a autoridade do poder: mandam os fortes, obedecem os fracos. Obviamente, esse enunciado se desdobra em narrativas sociais que favorecem aqueles que tradicionalmente mandam no mundo: mulheres obedecem homens, negros obedecem brancos, países pequenos obedecem potências, machos beta obedecem machos alfa. Estrategicamente, esse discurso nunca é apresentado como uma escolha ideológica, mas sim como o funcionamento natural das coisas: sempre foi assim, até os progressistas inventarem suas regrinhas. E há de ser assim novamente — um paraíso primitivo com cheirinho de Axe Body Spray.
Mas, se o mundo fosse mesmo reduzido à selvageria, quão boas seriam as perspectivas de gente como meu ex-amigo — gordo, pequeno, careca e desempregado — na busca por parceiras sexuais? Cientes desse obstáculo, os doutrinados aprendem que a felicidade está não a um, mas a dois passos de distância: o primeiro é desatar-se de toda essa bagagem ideológica que poda sua masculinidade — e o segundo é investir suor e lágrimas para se tornar a melhor versão de si — isto é, musculoso, rico, esperto e desinibido. Um homem liberto, um Übermensch, um sonho no qual deve-se projetar todas as decisões da vida.
A crise da masculinidade é uma crise de projeção. Homens apequenados se congregam num terrário digital construído em escala para que eles se sintam gigantes — girafas de bonsai, domadores de lagartixa. O problema é que eles precisam sair do terrário para ir à escola, ao escritório, à padaria, e se deparam com um mundo que não os trata à altura. É daí que nasce esse ímpeto destrutivo que vemos nos jornais e redes sociais — essa vontade de sair dando tiro, de explodir o show da Lady Gaga, de se filiar ao PL. Se não nos tratam como gigantes, que façamos deles meros anões!
Uma avaliação criteriosa da machosfera como questão psicossocial não cabe em uma breve reflexão. Seria um simplismo freudiano reduzir esse fenômeno a um mero complexo de superioridade. E convenhamos: nada é mais redpill do que recorrer a simplismos freudianos. O austríaco era um homem de opiniões fortes e fundamentações fracas, notório por seu desdém ao método científico e à opinião de qualquer outra pessoa. Sua soberba contribuiu muito para o arquétipo moderno do psicanalista — um sujeitinho petulante e impassível, que acredita saber tudo sobre você apenas pela maneira como você abriu a porta do consultório. E de todas as baboseiras que ele produziu em sua longa carreira, talvez a maior seja justamente uma das grandes obsessões da machosfera: a tal da inveja peniana.
Freud acreditava que o padrão da natureza era o homem. A mulher seria apenas um ser no qual falta a masculinidade. Daí ele tira a ideia de que, em algum momento da infância, as meninas olham para baixo e constatam que não possuem um pênis. Isso faz com que elas se sintam castradas e as deixa com inveja dos homens. Então, pelo resto de suas vidas, elas buscam resolver esse impasse — com sexo. É uma ideia esdrúxula, uma filosofia de bar, mas que hoje faz sucesso entre influenciadores redpill. Para esse bando, a luta feminista por equidade seria apenas uma manifestação histérica do complexo de castração.
As mulheres, no entanto, não têm exibido a inveja que lhes caberia. Em vez de reconhecer sua carência peniana, elas parecem bem resolvidas com suas genitálias, mandatos e posições de destaque e liderança. Na falta de alguém que os inveje, cabe aos homens reconstruir sua autoestima entre si. Surge então a machosfera como resposta, inaugurando a era do orgulho peniano. Uma era em que homens anseiam pela presença máscula de outros homens fortes, que lhes mostrem o caminho; em que homens manifestam admiração e carinho por seus semelhantes, deixando que os toquem no eu mais íntimo. Uma sauna gay? Não — uma fraternidade heterossexual inegociável, que morre de nojo de mulher, mas gosta de sexo e da casa arrumada. Seria cômico, se não fosse trágico.
Com o falocentrismo ereto em Washington e espalhando suas sementes digitais pelo mundo, ninguém está seguro contra a ira do cromossomo Y. Essa gente não faz mal apenas a si — eles são um problema de segurança pública. Muitos que começam praticando crimes contra o senso do ridículo evoluem para crimes contra a vida. Portanto, aos homens dessa bolha — incluindo meu ex-amigo —, infelizmente não tenho palavras de consolo. Vocês estão além da minha bondade. Mas, para não irem embora de mãos abanando, posso oferecer umas palavras de chacota?
Para começar: seu problema não é a injustiça — é a liberdade. Toda garota tem o direito de te rejeitar, assim como você tem o direito de rejeitar qualquer garota. O mercado é livre; o choro, também. Chore mais, que talvez você odeie menos.
Seu problema também não é falta de músculo — é falta de tato. Mas, às vezes, é falta de músculo também. Quem tem a alvenaria de um castelo de areia não deveria sair por aí em grito de guerra. Você, que gosta tanto de metáforas bélicas, inspire-se no exército: braço forte e mão amiga, em vez de braço fino e mão boba.
Seu problema também não é ganhar pouco — é aplaudir bilionário. Você acusa mulheres de só gostarem de homens ricos, mas quem está aí tendo sonhos molhados com o Elon Musk?
Seu problema, coleguinha, também não é ter pinto pequeno — é transar mal. Se você se sente ameaçado por um vibrador, é porque reconhece a competição acirrada.
E, para finalizar, a mais importante de todas as reflexões: seu problema não é falta de macheza — é excesso de infantilidade. Cresça.