O sindicato das influenciadoras

O sindicato das influenciadoras
Photo by Maria Fernanda Pissioli / Unsplash

Quinta passada, uma poderosa influenciadora foi pega de surpresa enquanto mostrava os recebidos da semana. Entre perfuminhos e tiaras, pré-treinos e bolsas caras, Paloma* encontrou um pequeno envelope prateado, monogramado com o símbolo ϡ.

Querida Paloma — dizia a carta —, a ϡ te convida para a Noite da Celebridade. Estamos reunindo as maiores influenciadoras da internet brasileira para apresentar uma grande novidade. Enviaremos um carro para te buscar. Até!

Paloma leu a carta em voz alta e pensou em descartá-la, mas logo pipocaram os comentários das seguidoras. Mais gente famosa tinha recebido o convite e confirmado presença. Com medo de ficar de fora, Paloma decidiu comparecer.

Marcou cabelo, manicure e depilação, remanejou a agenda de publis e de musculação. Chegada a hora, deixou os bebês com as babás, o marido com a chave do Porsche e entrou na limusine branca que a aguardava na porta. Horas depois, ela finalmente chegou ao local. Era um anfiteatro no estilo romano, erguido sobre um penhasco à beira do oceano. A limusine parou numa rotatória em frente à entrada. Um segurança a ajudou a desembarcar e a levou por um túnel até a arquibancada. Não havia nem mídia, nem fãs. Entre as convidadas, Paloma logo identificou rostinhos conhecidos — amigas, inimigas, gente que ela lançou à fama, gente com quem tinha drama atrás de drama. A arquibancada foi lotando rapidamente. Com o último sorriso laranja do sol no horizonte, acenderam-se os holofotes. Tambores rufaram pelos alto-falantes. Para surpresa geral, o chão da arena revelou-se uma enorme lona de projeção, onde apareceu um homem de suéter preto e dentes muito brancos.

— Sejam bem-vindas! — ele cumprimentou, sorridente.

O enorme rosto do apresentador ocupava toda a arena e parecia olhar bem nos olhos de Paloma.

— No time da ϡ, temos grande admiração pelo trabalho de vocês. De verdade. — Aplausos soaram nos alto-falantes. — E por essa razão, passamos anos desenvolvendo e aperfeiçoando uma influenciadora inspirada no que vocês fazem de melhor. O resultado é fascinante. Ela é cativante, fútil, bafônica. Ela é o creme do meme, diva, evasiva, ela encanta, ela espanta... — Os tambores voltaram a rufar. — Sem mais delongas, eu lhes apresento... Iara!

O apresentador desapareceu com um estalo. Os holofotes se apagaram por completo, mergulhando o anfiteatro na noite. Então o telão mudou de cena e passou a mostrar uma garota jovem, magra e muito bonita. Ela estava passando rímel, muito concentrada, e, pelo visto, não percebeu que estava sendo filmada. O anfiteatro todo olhava para baixo e a observava com atenção. A garota parecia estar em casa, num quarto acarpetado e cheio de luzes coloridas, decorado como um camarim.

— Meu Deus, já tá gravando? — a garota arregalou os olhos. — Jesus, nem pra avisar. Pra vocês verem o que eu passo! Enfim... — abriu um sorrisão — oi, beninas!

Um cochicho ecoou pela arquibancada. Paloma sentiu seu coração acelerar. Ela examinou a garota em busca de sinais de que aquilo não era real — uma unha disforme, uma sombra exagerada — mas não conseguiu encontrar nada. Até mesmo uma marquinha de acne a menina tinha no rosto. Convenhamos — pensou Paloma —, ninguém criaria uma personagem com acne.

— Pra quem não me conhece — continuou a garota —, eu sou a Iara. Eu... — ela olhou novamente por cima da câmera — você pega pra mim o... o... como é que chama mesmo? — estalou os dedos — o pincel! Nossa, eu tô doida mesmo. Pega ali o pincel pra mim?

Da lateral do vídeo, alguém lhe alcançou um pincel, que ela agarrou e colocou na mesinha à sua frente.

— Então, como eu ia dizendo... eu sou a Iara, e hoje eu tô super animada porque — deu um retoque final no olho direito —, saindo daqui, vou encontrar duas amigas que eu não vejo assim... há muito tempo, sabe? Tem anos de papo pra pôr em dia. Fofoquinhas, viagens... uma casou, separou, a outra voltou agora de Nova York... Ai, tô ansiosa.

A tela ficou preta. Um instante depois, apareceu novamente o mesmo quarto, mas filmado num ângulo mais aberto. Iara entrou em cena ao fundo e de corpo inteiro, já maquiada e vestida, de bolsa e tudo. Ela deu uma pirueta, levantou a perna de trás, mostrou a língua e fez um coraçãozinho com os dedos.

— E aí, gostaram? — ela perguntou, dando risada enquanto se olhava no espelho da penteadeira.

Nisso, um grito rompeu o silêncio do anfiteatro:

— A Birkin dela é falsa! — berrou a garota logo ao lado de Paloma.

O cochicho ganhou volume. Algumas cabeças faziam que sim, outras que não. Enquanto o debate comia solto, Iara virou-se lentamente e abriu um sorriso estreito e malicioso. Ela avançou alguns passos e seu rosto cobriu toda a arena. Então, fixando os olhos fumegantes na câmera, ela disse:

— E esse teu cabelo, hein, Luísa? Que padaria que te assou, amiga?

Pânico na arquibancada. Garotas se levantavam e rodopiavam à procura das câmeras. Uma famosa blogueira de moda, sentada na primeira fileira, começou a berrar palavrões na direção da tela e foi logo endossada pelas meninas ao seu lado. Do outro lado da arena, duas gêmeas famosas no OnlyFans desmaiaram ao mesmo tempo. Aos berros, uma influenciadora evangélica iniciou uma prece. Paloma aproveitou o alvoroço para olhar de relance para Luísa. Iara estava certa: ela realmente tinha exagerado na progressiva.

Nisso, o telão se apagou uma vez mais e reapareceu a figura do apresentador. Ele pedia calma e prometia explicações.

— Dependendo da sua definição, Iara é real, sim — ele esclareceu. — Tocá-la? Não, ninguém pode tocá-la.

O furor só aumentava.

— Onde ela mora? Atualmente, num data center próximo a Jundiaí — ele respondeu, e não conteve a risada.

Mais escândalo.

— Como ela foi feita? Bem...

O homem então explicou o grande truque.

Veja, ao longo dos últimos anos, milhões de brasileiros tinham participado de um mutirão que pagava um salário mínimo para tirar uma foto da íris. Isso era um programa especial da ϡ. Na hora de tirar a foto, era implantado um nanodispositivo — indolor, invisível — que transformava o olho em câmera.

— As manicures, as babás, os taxistas e porteiros. Talvez até mesmo uma prima distante e uma amiga falida. Muita gente em volta de vocês participou.

Desde então, as influenciadoras vinham sendo filmadas dia e noite em suas interações mais banais do cotidiano, gerando dados para treinar o I1 — modelo por trás de Iara. Somente assim foi possível recriar toda a profundidade existencial que dava voz a essas meninas.

Não havia mais uma convidada sentada. A própria Paloma, antes contida, tinha se unido ao coro. Os seguranças tentaram intervir, mas logo foram imobilizados por um grupo de blogueiras fitness gigantescas.

— Calma, gente! Isso daqui não é uma afronta, é uma oportunidade! — o apresentador tentou intervir. — A ϡ organizou essa noite para fazer uma oferta. Nós gostaríamos de digitalizar cada uma de vocês. Pensem: empoderadas com nossos algoritmos e libertadas das amarras da matéria, imaginem as portas que se abririam! A Iara se inspirou em vocês, e agora vocês podem se inspirar na Iara! Claro, pode ser que, individualmente, algumas de vocês acabem sendo descontinuadas. Mas juntas, vocês...

Ele não conseguiu completar a frase. A imagem chiou, rachou e desapareceu sob o pisoteio das influenciadoras que tomavam a arena. O que sucedeu foi inédito: horas de discursos acalorados, com as meninas se alternando no centro da arena e aplaudindo umas às outras. Elas concordavam em tudo — eram irmãs nessa batalha. Ali mesmo, concretizaram a fundação de um sindicato: o Sinfluência. Quando o sol nasceu, a Questão Iara já tinha ido parar em Brasília. O presidente da Câmara leu o relatório e prontamente convocou uma CPI.

— É questão de segurança nacional — argumentou. — Precisamos proteger nossa indústria principal.

Da esquerda à direita, todo mundo estava de acordo. Somente o representante do Partido Novo divergiu. O rapaz pediu a palavra e disse que aquele circo todo era a triste revolta dos retardatários, de quem resiste em vão ao progresso em vez de abraçar seus benefícios.

— Eu mesmo sou investidor da ϡ e não vejo a hora de substituir as Vossas Excelências por...

Seu microfone foi cortado. Gritos, ameaças, uma cadeira voando pela sala. O rapaz sabia de antemão que era voto vencido; tinha vindo apenas pelo alvoroço. Controlados os ânimos, o parecer da CPI foi colocado num carrinho e levado às pressas ao plenário. Ainda na mesma tarde, o PL da Iara foi votado em dois turnos, aprovado e sancionado. A partir das 18h do presente dia, toda influenciadora com mais de um milhão de seguidores teria que comprovar sua materialidade. Estava vetada a venda de íris em todo o território nacional. Quem vendeu, vendeu — quem não vendeu, não vende mais.

Recolhidas na sede do Sinfluência — em Fernando de Noronha —, as meninas celebraram o resultado com fogos e champagne. Noronha foi uma escolha pragmática: era o único lugar do Brasil onde a ϡ não tinha comprado nenhuma íris.

Voltar para o continente? Nem pensar.

— Deus me livre dessa invasão de privacidade — disse Paloma no dia seguinte, durante uma live na Baía do Sancho. — Enquanto não tirarem os olhos desse povo todo, eu não saio daqui.

Ao seu lado, Luísa mandou um beijo. Ela tinha aproveitado o dia para dar um trato no cabelo, que agora estava lustroso e cacheado.

*Paloma é um nome fictício, escolhido para evitar encrenca.