ATCG
— E aí, ele já reconheceu a paternidade?
Minha namorada abriu um sorriso pentelho:
— Olha... ele já chama de meu filhote, mas ainda não de minha filha.
Ela e a amiga conversavam na varanda, assistindo ao pôr do sol. Eu acompanhava o papo sentado na sala. Pantufa tinha se esticado ao meu lado e se entretia roendo uma traqueia bovina que fedia a carniça. De tempos em tempos, ela deixava cair o petisco e soltava um latido de frustração. Então eu ia lá, tirava aquele nojo do chão e colocava de volta em cima do sofá.
— O Felipe levou quase um ano pra chamar a Caju e a Castanha de filhas. Relaxa que vem.
Vem, sim.
O Felipe em questão era meu amigo da USP. Um velho companheiro das aulas de genética e de virologia, das manhãs geladas de imuno e dos corredores estreitos da anatomia. Um sujeito sereno, soberano e profundamente corinthiano. Me custa entender como ele acabou pai de duas gatas e marido de uma blogueira.
Aliás, cadê o Felipe?
Só faltava ele pra gente sair pra jantar.
O último fio laranja de sol desapareceu no horizonte, e as meninas decidiram trazer o papo pra sala:
— ... aí eu cheguei em casa e lá tava ele, todo papai, papai com as gatas.
Eu garanto que essa cena jamais aconteceria comigo. Afinal, eu conheci o verdadeiro pai da Pantufa: um corgi preto e branco de bochechinhas malhadas, de quem ela herdou a estampa e o tamanho XXL. Conheci a mãe, também. E a irmã e o avô. Conheci até mesmo aquele de quem Pantufa puxou muito da sua personalidade: o irmão caçula do pai, conhecido no canil como Tio Doido. Todos ali eram muito parecidos: corpo tubular e rente ao chão; orelhas altas; focinho comprido; babador felpudo. Autênticos pantufídeos.
E de mim, ela puxou o quê?
— Os olhos de pidão — rebateu minha namorada. — E a cara de pau.
As duas riram com gosto.
Eu discordo: esses atributos se aplicam a todo cachorro e à maioria dos homens.
Ainda assim, sou obrigado a conceder uma coisa: escolhi a Pantufa porque, de alguma forma, eu me enxerguei nela. Tal como filhos, cães são instrumentos de projeção. Eu não seria assimilado da mesma forma se a Pantufa fosse um pit bull tunadão ou um lulu esganiçado. Aí mora a diferença crucial entre filhos e cães: o filho te deixa nu diante do mundo; o cão te veste de liberdade poética.
Churchill, por exemplo, tinha feições de bulldog, mas sua paixão eram os poodles marronzinhos. Ele teve dois: Rufus e Rufus II.
Do outro lado do Canal da Mancha, Hitler viveu até o fim na companhia de sua querida pastora-alemã — a Blondi. Veja só: toda uma filosofia de vida materializada em um bichinho. No frigir dos ovos, tudo o que ele queria era transformar a Alemanha num canil.
Esse papo de eugenia me fez lembrar de Eugênia Costanzi-Strauss, minha professora de Biologia Molecular II e III. Uma das maiores especialistas em terapia gênica no Brasil, mas coitada: um fio desencapado. O tipo de mulher que cura o teu câncer pra depois te matar na porrada. Felipe e eu adorávamos as aulas dela.
Naquela época, surgiram as primeiras manchetes sobre CRISPR — a tecnologia de edição genética que prometia, por um lado, curar doenças e, por outro, mergulhar a humanidade em paradoxos.
A título de provocação, digamos que fosse possível configurar um embrião do zero, editando seu genoma letrinha por letrinha. Ele continuaria sendo o filho biológico de alguém? Ou a paternidade seria dada pelo CPF na nota fiscal?
Seja como for, a capacidade de configurar sua prole aproximaria a paternidade da peternidade.
Eu, por exemplo, se pudesse projetar um filho, obviamente faria uma filha. De quadrúpede, nesta casa, já basta o cachorro.
Agora, quanto aos atributos estéticos e funcionais, eu tomaria um rumo bem diferente daquele que buscam os eugenistas. É que eu acho uma baita pequenez de espírito essa de sonhar com filhos loiros, altos e bons de matemática. A tecnologia te permite criar quem você quiser, e sua inspiração é o LinkedIn?
Veja: todos os seres vivos são feitos das mesmas quatro letrinhas. Bactérias vulcânicas, peixes abissais, fungos maiores que o estado de Santa Catarina. Por que se restringir à prosa quando se pode ter a poesia?
Eu tenho outras ambições.
Querida Eugênia, se você estiver lendo isso, por favor, anote:
Eu quero uma filha majestosa como a harpia, veloz como o jaguar e peçonhenta como a cascavel. Eu quero uma filha lisa como o sapo e malandra como a raposa. Uma filha forte como o cavalo e muito boa de coice também. Eu quero que ela tenha braços de polvo, listras de tigre e cabeça de tubarão. Quero pinça de siri, bico de tucano e coragem de texugo. Quero uma filha felina, rapina, viral, coral, que exala o perfume de mil flores e que brilha mais que um milhão de vagalumes. E digo mais, cara Eugênia: eu quero uma filha feliz. Irredutivelmente feliz. Uma filha que não chora nem cortando cebola. Meus próprios genes têm pouco a contribuir aqui; melhor pegar os da mãe ou de alguma criatura bem alto-astral, tipo uma capivara ou um cogumelo mágico.
E assim fui viajando, desenhando os traços e cores e planos de vida dessa criatura pós-humana que carregará meu sobrenome, até que um latido me trouxe de volta para a sala de casa.
Cachorro safado, derrubou de novo o petisco no chão.
Claro que eu pego pra você, meu amor.
E olha lá: é o Felipe na porta!
Só deixa eu colocar o jantar da Pantufa antes de a gente sair.
Coitada, vai ficar aqui sozinha.
Meu filhotão.
Minha filhotinha.
Eu podia estar matando, roubando ou fazendo publi de bet, mas aqui estou, na humildade, pedindo pra você compartilhar essa publicação com alguém especial. Um amigo, um parente, um ex que você não esquece, um crush que já esqueceu de você. E se você quiser receber as publicações da Solário por email, basta se cadastrar clicando no botão Subscribe. A Solário é gratuita e escrita por humanos, para humanos. Sem agenda oculta e sem IA.