Diáspora
Vida nova, calça nova.
Logo quando me mudei pra Berlim, entrei numa loja pra comprar um jeans e fui recebido por um vendedor de sotaque suspeito. Era um tal de Ixe em vez de Ich, Gutchi em vez de Gut... mas beleza. Ele foi me atendendo em alemão, enquanto minha namorada e eu conversávamos em português. Levei duas calças ao provador e achei que ficaram curtas. Abri a cortina pra pedir outra numeração, e nisso vi o crachá no peito do vendedor: Raimundo.
Ora, ora.
Ele viu que eu vi, e eu vi que ele viu que eu tinha visto, e assim acabou o teatrinho. Raimundo passou a me encarar com ranço, feito um vilão desmascarado pelo Scooby-Doo.
Perguntei da onde ele vinha.
— Sou nascido na Bahia, mas moro em Berlim há dezessete anos — ele murmurou e saiu andando.
Fui atrás dele com as calças na mão.
— Que legal, cara! Eu sou de São Paulo e cheguei mês passado. Deixa eu te perguntar... tem a 34 da preta de corte reto?
De costas, ele apontou:
— Tudo o que a gente tem tá aí na parede. Pode olhar.
Numa última tentativa de simpatia, arrisquei:
— Tem bastante brasileiro em Berlim, né?
Raimundo soltou um suspiro irritado e sepultou:
— Não sei dizer. Não convivo muito.
Pois bem, Raymond. Não está mais aqui quem perguntou.
Vou dar uma colher de chá pro homem: imagina a dureza de viver dezessete anos em crise de identidade... é o Jorge Ben batucando um sambinha ao pé do ouvido, enquanto o eu lírico do Raimundo berra Ruhe!!!. Afinal, já passou das dez.
Brasileiros como ele a gente encontra aos montes por aí. Eles compõem toda uma classe de desnaturados: o povo que já foi brasileiro um dia, mas hoje, graças a Deus, não é mais.
A História nos mostra que uma das maneiras mais comuns de se lidar com a xenofobia é unindo-se a ela. Mas essa não é a única opção — longe disso.
Outros tantos brasileiros enveredam pela revolta e passam a compor uma segunda classe de imigrantes: os ufanistas.
Esse é o sujeito que vive sua brasilidade como o flamenguista vive o Flamengo. O clima, o povo, o SUS e o cuscuz: tudo o que é nosso é melhor e quem discorda é viralata.
Em casos leves, o ufanismo se manifesta como pedância.
É ficar brazilsplaining para o gringo que não curtiu brigadeiro ou que se decepcionou com as praias do Rio que foi ele quem fez tudo errado. É ir ao mercado de natal com os amigos estrangeiros e ficar latindo que festa junina is much better.
Nada demais.
Agora, quando provocado, o pedante rapidinho vira jihadista.
Aparece o Mbappé dizendo que o futebol sul-americano ficou pra trás, e pronto: está declarada guerra contra o PSG, o Real, a França, a União Europeia, o hemisfério norte, o imperialismo, o colonialismo e o capitalismo.
Pão de queijo pisa nessa bosta, comenta um ufanista no vídeo de um padeiro que ensina a fazer croissant.
Toma essa, Mbappé.
Sabe o que o futebol europeu tem mais que o nosso? — indaga outro, enquanto assiste à semi da Champions League. Tem mais é que se fuder.
Mas a subjugação e o proselitismo não são as únicas formas de se lidar com a xenofobia. Existe ainda uma terceira e última classe de expatriados na pauta de hoje: os refugiados.
No começo do ano, eu visitei um casal de brasileiros que veio pra Alemanha há um bom tempo; ele a trabalho, ela a marido.
Ao entrar no apartamento deles, parecia que eu tinha aberto um portal de Hamburgo a Nova Hamburgo.
A TV ligada no Globoplay.
Ao lado da pia, uma pedrinha de Phebo.
Na geladeira, superbonder, requeijão e Guaraná.
Os dois não se mudaram pra Europa: eles recortaram uns oitenta metros quadrados de Brasil e mandaram entregar do outro lado do oceano.
Ainda mais curioso é que as ilhotas que eles frequentavam pareciam se conectar sem a necessidade de atravessar território estrangeiro. A esposa, por exemplo, sabia listar todos os mercadinhos, manicures e estúdios de depilação brasileiros num raio de cinquenta quilômetros — mas nunca havia pisado na principal avenida da cidade.
O papo da noite acabou sendo o paredão do BBB, juntamente com as fofocas fumegantes da última fornada de subcelebridades. Foi tanta surra de Brasil que, saindo de lá, a gente decidiu comprar ingresso pro show do Fábio Porchat.
O evento ocorreu num cinema aqui de Prenzlauer Berg e a fila dava a volta no quarteirão. Tudo brasileiro, claro.
— Você viu ali? — sussurrou minha namorada. — É o filho do Tarcísio Meira.
Fomos avançando lentamente, sempre atentos ao papo alheio.
— Vim pra cá terminar meu doutorado — disse uma garota atrás de mim. — Minha tese é sobre como brasileiras que se mudam para o exterior pra acompanhar os parceiros tendem a ficar presas em casa, sem aprender o idioma e fazer novas amizades.
Boa tese.
Depois de quase uma hora, conseguimos entrar no auditório.
— Você viu quem tava ali na porta? — cochichou minha namorada. — Era aquela Fernanda, sabe? A comediante? Que tem o cachorro?
Ah!
Enfim, apareceu o Porchat, que abriu o espetáculo tirando uma mulher da primeira fileira pra fazer umas gracinhas.
— Como fala merda em alemão? — ele perguntou.
A mulher não sabia.
— Há quanto tempo você mora aqui, minha querida?
Três anos.
Coitado do Porchat.
Os olhos dele diziam embaixo de qual pedra você mora, minha querida?, mas ele respirou fundo, virou para a plateia e perguntou:
— Quem está aqui há mais de três anos?
Muitas mãos.
— Mais de dez anos?
Um pouco menos.
— Mais de vinte?
Surpreendentemente, ainda tinha bastante mão levantada.
A nossa diáspora não é mais tão recente assim.
Será que o Raimundo já tem filhos?
Eu podia estar matando, roubando ou fazendo publi de bet, mas aqui estou, na humildade, pedindo pra você compartilhar essa publicação com alguém especial. Um amigo, um parente, um ex que você não esquece, um crush que já esqueceu de você. E se você quiser receber as publicações da Solário por email, basta se cadastrar clicando no botão Subscribe. A Solário é gratuita e escrita por humanos, para humanos. Sem agenda oculta e sem IA.