Encontros sanitários
Meu intestino funciona todos os dias pontualmente às dez horas da manhã. Isso é motivo de grande orgulho, mas também de grande angústia. Se ainda fosse num horário menos disputado... Eu invejo os constipados que não têm esse compromisso fixo na agenda e vivem ao doce acaso da fisiologia.
A crônica de hoje é sobre esse acaso, que muito me ocupou após um episódio que aconteceu no meu último emprego.
Tudo começou às quinze pras nove de uma manhã qualquer, quando prendi minha bicicleta na entrada do escritório. Cumprimentei a recepcionista, peguei um duplo espresso na copa, subi as escadinhas de metal que davam na engenharia e iniciei minha rotina de trabalho.
Às 09h31, entrei numa reunião de meia hora.
Às 09h59, comecei a me contorcer na cadeira.
Às 10h03, com o debate ainda rolando, a biologia enfim me deu um ultimato. Tirei o microfone do mudo e anunciei que eu precisava entrar em outra reunião. Imediatamente parti rumo ao banheiro — atravessando o escritório em passinhos de pinguim — e fiz o que tinha que ser feito.
Enquanto eu lavava as mãos, entrou um rapaz do marketing; um americano magro e alto com pinta de skatista. Shawn, Shane, Sean, não lembro o nome.
Como manda a etiqueta, trocamos um opa através do espelho da pia e eu deixei o palco pra ele.
De volta à minha mesa, trabalhei mais um pouco, saí pra almoçar e fiz mais um punhado de reuniões — um dia como qualquer outro — até que eu decidi pegar um iogurte na copa e acabei derramando uma bela colherada sobre a camisa.
Fui ao banheiro pra me limpar e, chegando à porta, dei de cara com quem saindo de lá?
Ele mesmo.
Olha aí o cagão, pensei. O azulejista.
No entanto — e é aqui que a coisa fica interessante — o rapaz me cumprimentou não com o sutil constrangimento que convinha à sua situação, e sim com um sorriso meio irônico, de canto da boca.
Pera lá, pera lá.
Será que esse cara pensa que o cagão aqui sou eu?
Por pouco não saí correndo atrás dele no corredor, mostrando as manchas na minha camisa e berrando: É iogurte! É só iogurte!
Mas isso poderia levantar outro tipo de questão.
Era inegável que havia algo de estranho nesse acaso. Mais que uma investigação de cunho digestivo-comportamental, eu estava diante de uma questão probabilística.
Veja, se eu vou ao banheiro duas vezes e em ambas dou de cara com o mesmo sujeito, o que é mais provável: que ele tenha ido exatamente duas vezes ao banheiro, nos mesmos horários que eu, ou que ele praticamente more no banheiro, e eu tenha apenas interceptado duas de suas muitas passagens?
Eu fiz a conta.
A probabilidade dos encontros serem ao acaso é dada por:

sendo L a jornada de trabalho e d, a duração de uma visita ao banheiro.
Resolvendo essa equação para L = 8 horas e d = 5 minutos, chegamos numa chance de 0,26%, ou 1 em 390.
Ou seja, estatisticamente, não havia dúvidas: o cagão era ele.
Mas o inconveniente desse cálculo é que ele vale para os dois lados: o sujeito tinha o mesmo embasamento matemático pra sair por aí contando historinha de que o brasileiro da engenharia não sai da privada.
Fui pra casa irritado.
Na manhã seguinte, cheguei ao escritório já quase nove horas, atrasadíssimo pra uma reunião.
Amarrei a bicicleta, cumprimentei a recepcionista, mas subi sem pegar meu espresso na copa: uma simples mudança de rotina que atrasou minha digestão em quase duas horas. Já era quase hora do almoço quando meu intestino, enfim, se manifestou.
Fechei o computador e tomei o corredor rumo ao banheiro. Um arco de luz se projetava sobre o carpete.
Tem alguém lá dentro.
Com o coração palpitando, agarrei o puxador, empurrei a porta e dei de cara com quem secando as mãos?
Opa!!!
Agora não tinha mais o que discutir: certamente o cagão era ele.
Apresentei a teoria ao meu pai — que não resiste a um desafio matemático.
— Isso não diz nada. — ele avaliou. — Alterar o seu horário de banheiro é como trocar os números que você joga na loteria. Não tem impacto estatístico.
À merda com esse maldito acaso que eu não conseguia refutar. Vai ver o cara tem rinite e vai toda hora assoar o nariz.
Enfim.
Nos meses seguintes, passei a ir cada vez menos ao escritório — e quando eu ia, era sempre depois das dez.
Um belo dia, cheguei após o almoço e fui direto à copa pra pegar um café. A recepcionista veio de fininho atrás de mim pra contar uma fofoca: o rapaz do marketing tinha pedido as contas.
— Ele simplesmente chegou, foi até a salinha do chefe e disse: Hoje é meu último dia.
Não quis cumprir aviso-prévio nem negociar uma rescisão. Ficou até o fim do expediente e tchau.
A notícia me deixou um tanto abalado, embora, apesar dos muitos encontros, eu nunca tenha tido a oportunidade de conversar com ele. Éramos apenas Klobekanntschaften, como se diz em alemão. Conhecidos de banheiro.
Quando chegou o verão, eu também saí da empresa.
Muito tempo se passou desde então, até que, numa tarde gelada e chuvosa, eu desci do bonde no Hackescher Markt e adivinha quem passou por mim, entrando pela mesma porta?
Opa.
— Aquele ali — comentei com minha namorada — era o cara do marketing.
O vento forte enguiçou meu guarda-chuva.
— Quem? — ela perguntou, vestindo o capuz.
Paramos no semáforo.
— O cara do marketing, lembra?
Ela me olhou, intrigada.
— O cagão?
Eu podia estar matando, roubando ou fazendo publi de bet, mas aqui estou, na humildade, pedindo pra você compartilhar essa publicação com alguém especial. Um amigo, um parente, um ex que você não esquece, um crush que já esqueceu de você. E se você quiser receber as publicações da Solário por email, basta se cadastrar clicando no botão Subscribe. A Solário é gratuita e escrita por humanos, para humanos. Sem agenda oculta e sem IA.