Fila na porta
Quando eu era criança, minha avó tinha um bufê de festas: o Ouro Preto. Uma das funcionárias mais antigas do bufê era a Gilza. Certo dia, Gilza chegou tarde ao serviço e explicou que tinha pego uma fila de quase duas horas pra regularizar o título de eleitor. O pior: quando chegou sua vez, ela confirmou o que já suspeitava — seu título nem estava irregular.
Questionada, Gilza explicou:
— Vi toda aquela gente pegando a fila, resolvi pegar também!
É fácil julgar, mas a verdade é que filas são irresistíveis.
Eu mesmo pude atestar isso recentemente, quando tive um voo cancelado no aeroporto de Heathrow. O anúncio ainda nem tinha acabado e passageiros já corriam pra formar uma fila, que logo tomou todo o saguão de embarque. Confuso, perguntei a uma senhora que tinha assegurado um bom lugar:
— Essa fila é pra quê?
— Eu também não sei. — Ela respondeu. — Acho que eles vão falar quando a gente chegar lá na frente.
Não tinha ninguém lá na frente.
Guichê vazio; luzes apagadas; nenhum funcionário da companhia aérea em vista.
Naturalmente, decidi pegar a fila também. Dentro, a esperança de uma resolução rápida era pequena; fora, era nula.
Assim que tomei meu lugar, fui tomado de um ranço por todo mundo que chegou antes de mim. O único alívio era olhar pra trás e ver o pessoal que chegou depois.
Bocejei e olhei o relógio. De onde vem esse barulho? Minhas pernas foram ficando inquietas. A mochila começou a pesar. Olhei o relógio de novo. Os ponteiros pareciam andar pra trás. Pera, aquele sujeito ali na frente tá furando?.
Enquanto minha mente digeria a si mesma, um rapaz se aproximou de mim e perguntou:
— Essa fila é pra quê?
— Eu também não sei. — Respondi. — Acho que eles vão falar quando a gente chegar lá na frente.
Nesse momento, compreendi a natureza vetorial daquela cena: toda fila tem direção, mas muitas não têm destino. São esperas por algo que a gente só vai descobrir esperando. Filas pra pegar outras filas. Ainda assim, nós não conseguimos evitá-las: por maior que seja a ansiedade de esperar numa fila, ela não se compara à angústia de não estar em fila nenhuma.
Vivenciei essa angústia quando me mudei pra Berlim e saí em busca de um lugar pra morar. Os pouquíssimos apartamentos disponíveis na cidade tinham centenas — quando não milhares — de interessados. O tempo ia passando e eu não conseguia sequer agendar uma visita. Quando apareceu a primeira, senti o mais profundo alívio: finalmente, eu estava numa fila.
O corretor chegou numa moto preta de ronco grosso. Usava casaco de couro e o cabelo loiro penteado pra trás.
— Temos exatos dez minutos até o próximo agendamento — ele anunciou, tirando as luvas.
O apartamento era nota seis. Afastado, pequeno, sem graça.
— Gostei — disse ao final. — Tenho mais algumas visitas pela frente. Pretendo decidir até semana que vem.
O corretor abriu um sorriso áspero.
— Amigão, tá vendo essa chave? — Ele balançou o chaveiro na minha cara. — Até o fim do dia, ela não me pertence mais. A fila anda.
Aprendi a lição. Pouco tempo depois, encontrei um apartamento nota sete. Terminei a visita com o aluguel assinado.
Feliz, brindando a conquista, eu nem imaginava que esta tinha sido apenas a fila de boas-vindas à minha nova vida. O brasileiro vive pegando fila porque não quer ficar de fora; o alemão, porque é assim que as coisas funcionam e ponto final. Na terra da Ordentlichkeit, a fila não é mero mise-en-scène na ópera da oferta e demanda: ela é um monumento à igualdade; um marco civilizatório; o triunfo do pacto social.
— A fila tem uma razão de ser. — afirma um entusiasta da noite de Berlim, em entrevista ao ZDF. O assunto é a famosa balada Berghain, notória por rejeitar grande parte daqueles que esperam longas horas na fila. — Você precisa de tempo pra se preparar espiritualmente para o que vem adiante — ele reflete. — E essa incerteza — se vão te deixar entrar ou não — é preciso simplesmente abraçá-la.
Mais que uma instituição, por aqui a fila também é um fetiche.
Mas eu reconheço: deve ser um sentimento maravilhoso ver uma fila na porta da sua loja. De todas as filas onde essa gente podia estar, eles escolheram a sua. Como lidar com tamanho poder e responsabilidade? Simplesmente atender um por um, entregando o produto e desejando um bom dia? Que experiência banal. Quem é que volta na semana seguinte pra esperar numa fila tão medíocre?
Se a loja fosse minha, eu tomaria como referência o City Bar, ícone absoluto da cidade de Campinas e lar do melhor bolinho de bacalhau que eu já comi.
Quando eu descobri que o City Bar fazia bacalhoada às sextas-feiras, não pensei duas vezes. Pulei o café e cheguei, faminto, às onze e meia da manhã. Já tinha fila. Esperei mais de uma hora pra conseguir uma mesa. Enfim, apareceu um garçom de nome Oziel, a quem pedi a bacalhoada.
— Já acabou, chefe.
Como assim? Era meio-dia e meia ainda, porra.
Me contentei em pedir uns bolinhos e uma cerveja. Tudo muito gostoso, claro. A decepção já estava quase superada quando eu capturei, de rabo de olho, o descarado do Oziel levando uma bacalhoada fumegante pra uma mesa que chegou um bom tempo depois de mim.
Intimei o garçom, que me explicou na maior naturalidade:
— É que eles são clientes fixos. Tão aqui toda sexta.
Pois bem.
Restam-me apenas duas opções: comer bolinho pra sempre, ou repetir esse processo toda sexta-feira para, um dia, quiçá, poder provar a bacalhoada.
Bem jogado, Oziel.
Isso sim é fila.
Eu podia estar matando, roubando ou fazendo publi de bet, mas aqui estou, na humildade, pedindo pra você compartilhar essa publicação com alguém especial. Um amigo, um parente, um ex que você não esquece, um crush que já esqueceu de você. E se você quiser receber as publicações da Solário por email, basta se cadastrar clicando no botão Subscribe. A Solário é gratuita e escrita por humanos, para humanos. Sem agenda oculta e sem IA.