Respeitável público

Respeitável público
Photo by Laura Louise Grimsley / Unsplash

Circo pra cá, circo pra lá; é toda hora esse mesmo assunto no jornal.

— E o malabarismo entrou para a grade curricular nas escolas chinesas — anuncia César Tralli.

Corta pra uma sala de aula cheia de pierrôs e colombinas, arremessando cinco, dez bolinhas, cada. Uma professora de olhar severo caminha entre as mesas, trajando um chapéu de arlequim.

Começou...

Eu pego o controle e aumento um pouco o volume.

— Mei Ling tem apenas nove anos de idade — narra o repórter. A câmera foca numa garotinha. — Mas já recebeu propostas milionárias dos maiores circos da Ásia.

— Ela tem uma ética de trabalho exemplar — conta a professora, dublada pelo repórter. — Aos domingos...

Toca a campainha de casa. A pizza! Salto do sofá, afobado feito um cachorro, dou uma topetada na mesa de centro e vou mancando e xingando até a porta. Com a caixa da pizza na mão e o dedão do pé ainda latejando, volto ao sofá a tempo de ouvir Renata Vasconcellos abrindo a próxima matéria:

— E a Casa Branca anunciou hoje um pacote de dois trilhões de dólares para recuperar a glória do circo americano. A correspondente do JN em Washington, Raquel Krähenbühl, esteve presente na coletiva e traz mais informações.

A tela se divide em duas. À direita, aparece Raquel, toda agasalhada, com o Capitólio iluminado ao fundo.

— Boa noite, Raquel. Como foi a repercussão do anúncio?

— Boa noite, Renata. Olha, como já era de se esperar, a recepção foi bastante polarizada. No mercado, o pacote gerou euforia. O S&P 500, principal índice da bolsa de Nova York, fechou o dia em alta de mais de 4%. Esse otimismo veio principalmente em razão dos incentivos às chamadas tecnologias de fronteira: isto é, cornetas, uniciclos e carrinhos de pipoca.

— Produtos nos quais a China vem ameaçando o domínio americano, certo?

— Isso mesmo. Agora, no campo político, o pacote foi duramente criticado pela oposição; em especial, por conta de uma promessa de campanha que agora tem tudo pra se tornar realidade: a adição do busto de P.T. Barnum ao Monte Rushmore.

Passa uma moto na minha rua. Duas, três. Será que todo mundo resolveu pedir pizza?

— A líder da minoria fez hoje um pronunciamento no Congresso contra o que chamou de degeneração moral e violência histórica. Em resposta, a bancada do governo vestiu narizes vermelhos e promoveu um gargalhaço: ou seja, uma risada que durou do começo ao fim do discurso.

Depois de matar uma fatia de calabresa, eu pego uma de quatro queijos e dou uma bela mordida. Nisso, um fio de gorgonzola escorre pela minha camisa. Mas que inferno! Sorte que agora vêm os comerciais. Assim, dá tempo de tirar essa roupa, vestir o pijama, pegar uma coquinha e passar no... socorro, a vinheta! Corro de volta pra sala e dou outra topetada na mesa de centro.

Tralli:

— O governo alemão anunciou hoje a criação de um órgão regulador para atividades circenses, bem como uma série de novos tributos e regulamentações para o setor.

Jesus amado, meu dedinho.

— A iniciativa veio em resposta às manifestações que ocorreram no domingo passado, quando milhares de pessoas foram às ruas em Berlim para protestar contra as Big Circus. As medidas anunciadas hoje, no entanto, foram reprovadas por representantes da indústria local. A porta-voz do Sindicato dos Acrobatas publicou nota em que chama a nova legislação de desequilibrada, e argumenta que, num mundo cada vez mais dominado pelo circo, a Alemanha estaria na corda bamba.

Enfim. É chegado o momento de decidir: pego mais um pedaço de pizza ou deixo um espacinho pra sobremesa?

Antes que eu consiga solucionar o dilema, Renata já dispara a próxima:

— Em entrevista ao Wall Street Journal, o CEO da OpenCircus, John Clayton, afirmou hoje que — abre aspas — os chineses vencerão a corrida do circo se eles puderem usar pandas e nós, não — fecha aspas. O debate sobre o emprego de animais vem se intensificando desde que viralizou a cena de um panda vermelho saltando por um arco em chamas, no que aparenta se tratar de um circo chinês.

Segue então uma longa entrevista com a fundadora de uma ONG de proteção aos ursos. Eu pesco apenas algumas palavras soltas enquanto vasculho o congelador em busca de um sorvetinho. Em seguida, retorno à sala — fazendo um belo arco em volta da mesa de centro — e pego o bonde andando:

— ... levou estudantes da Universidade Estadual da Bahia, a UEBA, a criarem o festival Fogo no Parquinho.

— Nós rejeitamos os padrões impostos pelo circo imperialista. — diz Ana, uma anã. Seu espetáculo, Ah, não!, está em cartaz no teatro da universidade.

— É um monólogo em cinco atos no qual promovemos uma reflexão sobre o bestialismo. — ela explica.

De volta ao estúdio, Renata assume a última notícia da noite:

— E o Cirque de Soleil anunciou hoje as datas da turnê brasileira de seu novo show, Rien de Rien. Mas quem quiser um lugar na tenda vai ter que preparar o bolso. A venda de ingressos abre amanhã às 23h59, com preços a partir de vinte e oito mil reais. Ainda assim, organizadores estimam que os ingressos devam se esgotar em menos de dez minutos.

A câmera recua, enquadrando a bancada de ponta a ponta.

— Mais notícias você acompanha no Jornal da Globo, que será exibido após o amistoso da seleção brasileira contra o Uzbequistão. Boa noite.

Circo, circo, circo. Não aguento mais esse blá-blá-blá. Desligo a TV, apago as luzes e tomo o rumo da cama. Mas que inferno, penso ao deitar. Escorreu sorvete na blusa do pijama.


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